Curiosidades:
REAL, REAIS...
Cláudio Moreno
Uma leitora japonesa, casada com um brasileiro, escreve de Quioto para elogiar esta coluna. Como o casal pretende mudar-se para o Brasil, ela vem estudando regularmente o nosso idioma, mas tem encontrado algumas dúvidas que os livros de que dispõe não conseguem solucionar. "Não consigo entender, professor, por que parabéns não tem singular e por que real, a moeda brasileira, não tem plural". Como vou mostrar a seguir, minha cara leitora, não é bem isso o que acontece por aqui.
Em primeiro lugar, não podemos afirmar que parabéns não tem singular. É certo que existem, em nosso idioma, muitos vocábulos que praticamente só usamos no plural, conhecidos como pluralia tantum - expressão tradicional da gramática latina que significa "apenas plurais". E não são tão poucos assim; entre os mais conhecidos, lembro-te afazeres, anais, arredores, bodas, condolências, confins, esponsais, fezes, exéquias, núpcias, parabéns, pêsames, primícias, víveres. Como a marca do plural é sempre acrescentada a uma forma anterior, não-marcada, não há dúvida de que todos eles têm (ou tiveram) uma forma singular, que, por razões semânticas, simplesmente deixou de ser empregada. Em textos mais antigos, vais encontrar, aqui e ali, alguma ocorrência de pêsame, fez, boda, etc., prática logo abandonada. Nosso estimado Padre Vieira, em seus Sermões, escritos no século 17, usa parabém por toda parte, inclusive fazendo um jogo de palavras tão ao seu gosto: "Alcançaram o que pediram, aceitaram muito contentes o parabém do despacho, mas o despacho não era para bem". Certamente haveríamos de achar outros exemplos em escritores da mesma época, mas isso não deve obscurecer o fato, hoje incontestável, de que esses vocábulos devem ficar mesmo é no plural. Para fins práticos, devem ser considerados como aquelas cadeias de montanhas que também sugerem a existência de um singular perdido na noite dos tempos: os Alpes, os Andes e os Pirineus.
Quanto ao nosso real, admito que muita gente simplesmente não utiliza a forma do plural, sob a misteriosa justificativa de que é o nome próprio do nosso dinheiro (!); conseguem, sem enrubescer, dizer vinte real, assim como os camelôs cariocas falam de dez dólar. Estas pessoas devem ter memória curta, para esquecer que, em vernáculo, nossas moedas sempre tiveram singular e plural: sempre se falou e escreveu cruzeiros e cruzados; continuamos a nos endividar em dólares e em euros; as páginas da literatura estão repletas de tostões e vinténs, piastras e rupias, patacões e balastracas.
Quando a nossa atual moeda foi instituída, houve uma breve discussão sobre qual seria o seu plural; os mais afobadinhos encontraram "real - pl. réis" nos dicionários e vieram, triunfantes, corrigir os que começavam a dizer reais. Em pouco tempo, contudo, esclarecia-se o equívoco: réis era o plural de um real virtual ("moeda ideal", diz Morais), valor apenas de referência; o verdadeiro real, antiga e respeitável moeda portuguesa, fazia mesmo o plural reais (como, aliás, qualquer substantivo terminado em -AL). O velho dicionário de Morais (minha edição é de 1813) é bem rico em detalhes: explica-nos que havia os "reais brancos del-Rei D. Duarte; eram de cobre com estanho, 20 deles faziam uma libra e valiam 36 réis"; "os reais pretos, de cobre sem liga"; e "os reais de prata".
Portanto, prezada leitora, quem te disse que aqui não pluralizamos o nome da nossa moeda enganou-te direitinho, pois assim fazemos desde 1994. E já que vens morar no Brasil, brindo-te com uma útil observação: o antigo mil-réis hoje serve para designar, popularmente, qualquer unidade do inconstante dinheirinho brasileiro; eu já usei mil-réis (o nosso simpático merréis, avô da merreca) para falar do cruzeiro, do cruzado, do cruzado-novo, do cruzeiro-novo e agora do real. Se um dia - que os deuses não permitam! - surgir o real-novo, vou continuar a dizer "Custa dois mil-réis".
(Porto Alegre, 13 de novembro de 2004 - Jornal Zero Hora, Edição nº 14328)
[Prof Cláudio Moreno - E-Mail claudio.moreno@zerohora.com.br - www.sualingua.com.br ]
O VERDADEIRO SIGNIFICADO DA PALAVRA TREM
Interessante que o assunto mineirês veio a tona logo no dia que alguns transtornos foram causados pelo desconhecimento do mineirês por parte de alguns jornalistas que escreveram a seguinte manchete:
"Trens batem de frente em Minas".
Os mineiros obviamente não deram a devida importância, já que pra nós isto quer dizer apenas que duas coisas bateram. Poderiam ser dois carros, um carro e uma moto, uma carroça e um carro de boi; ou até mesmo um choque entre uma mala de viagem e a mesa de jantar...
Movido pela curiosidade, resolvi então consultar o Aurélio e vejam o que diz:
Trem: sm. 1. Objetos que formam a bagagem dum viajante. 2. Mobiliário duma casa. 3. Bras. Comboio ferroviário. 4. Bateria de cozinha. 5. Bras.Pop. Treco. 6. Diz de pessoa ou coisa ruim, imprestável.
(Bras. : é a abreviatura de Brasileirismo)
Vejam que o sentido de comboio ferroviário é apenas o 3º, e ainda é considerado um brasileirismo. Comentei o fato com um amigo especialista em etimologia que esclareceu a questão: o comboio ferroviário recebeu o nome de trem, justamente porque trazia, porque transportava, os trens das pessoas. Vale lembrar que nesta época o Brasil possuia uma malha ferroviária com relativa capilaridade e o transporte ferroviário era o mais importante, assim era natural que as pessoas fizessem esta associação.
Moral da estória: O mineiro é antes de tudo um erudito. Além de erudito,ainda é humilde e aceita que o pessoal dos outros estados tripudiem da forma como usa a palavra trem. Na verdade, acho que isto faz parte do espirito cristão do mineiro, ele escuta as gozações e pensa:
"Que trem, sô... mas que sejam perdoados, pois não sabem o que dizem".
[Quem conhecer o autor deste texto, avise-me por gentileza]
ORIGEM DA PALAVRA MANJEDOURA
Segundo o mestre Deonísio da Silva, manjedoura deve vir do italiano mangiatoia , cocho onde se põe comida para os animais. Pode ter derivado de manjar (comer), que tem formas semelhantes no francês manger e no italiano mangiare .
No latim, que deu origem ao português, ao francês e ao italiano, há o verbo manducare , que significa mastigar.
A manjedoura, por ter servido de berço ao Menino Jesus, tornou-se um símbolo cristão.
Manjedoura, portanto, é o lugar (douro) onde os animais comem (manjar).
É importante também observarmos o sufixo "-douro", que aparece em palavras como ancoradouro (lugar onde o navio ancora, põe a âncora para atracar), babadouro (tipo de protetor onde a criança baba) e bebedouro (onde se bebe água).
Com muita freqüência ouvimos "bebedor", em vez de bebedouro. Ora, bebedor é aquele que bebe, e não o lugar.
Por fim, é interessante lembrar que o sufixo "-douro" é variante de "-doiro". Isso significa que as formas ancoradoiro e bebedoiro também existem. E para o babadouro, o dicionário Aurélio também registra as formas babadoiro e babador. Existe ainda o sinônimo babeiro.
DE ONDE VEM O ARLEQUIM?
Affonso Romano de Sant'anna
Aí pelas ruas talvez exista ainda alguém fantasiado de Arlequim, como ocorria nos carnavais há algumas décadas. Mas é raro. Assim como o Pierrô e a Colombina, o Arlequim foi muito popular na virada do século. Aliás, não só esse trio, mas toda uma família de saltimbancos, que havia irrompido nos palcos do século XVI. Mas por uma série de fatores, a tematização desses tipos foi muito constante na virada do século XIX para o século XX.
Em 1892, Leon Cavallo cristalizou o conflito do triângulo amoroso em "Os palhaços". Em 1905, Picasso pinta "Família de saltimbancos" e outros quadros com esses personagens. Degas e Cézanne estão entre muitos que também pintaram seu "Arlequim". A própria literatura brasileira vem, em 1919, com "Carnaval", de Manuel Bandeira; em 1920, com "Máscaras", de Menotti del Picchia, e "Arlequinada", de Martins Fontes. Mário de Andrade, por sua vez, tematizou o carnaval sob várias formas e definia-se como uma criatura arlequinal.
Mas quem vê o Arlequim tão sestroso, folgazão e brejeiro (como se dizia), mal pode imaginar que num tempo remoto ele foi o avesso disto tudo. Exatamente. Originalmente, em vez de um sedutor, foi um violador. Em vez de amante, um estuprador. Em vez de um dançarino, um guerreiro bárbaro.
Por isto, o estudo de certas imagens e palavras mostra como o certo e o avesso vivem se intercambiando. Preocupado com essas ambivalências, Freud já havia anotado que a etimologia de "branco" e "preto" parecia ser a mesma, alertando para o fato de que o radical do francês "blanche" e do inglês "black" é o mesmo.
Arlequim, Hallequim. O nome é quase idêntico. Mas o significado diametralmente oposto.
Quem vê no palco ou no carnaval o saltitante e sedutor Arlequim nem percebe que ele é uma variante moderna de um tipo selvagem que comandava uma horda de homens-bestas. Hallequim é uma deformação onomástica de Harila-King - rei dos exércitos. Tinha na mão enorme maça ou tacape. Comandava um feralis-exércitus (exército de mortos). Pertencia à mesma estirpe de figuras primitivas, como o lendário rei Frotho, da mitologia dinamarquesa, que invadia aldeias, violentava mulheres e humilhava barbaramente os vencidos. Esses guerreiros exibiam a petulância (agressividade sexual), a lascívia (exigências sexuais) e se consideravam conubernales (companheiros da tenda do rei). Vestiam-se de peles selvagens, assemelhando-se aos ursos, e não cortavam os cabelos até que matassem alguém. Também não tinham propriedades pessoais e viviam se deslocando atrás de presas, como centauros seqüestradores de mulheres.
Mito? Realidade?
Esse exército não era só uma crença. Era muito bem representado por máscaras. Temos uma prova disto, uma descrição que data de 1100, vinda da Normandia, que cita como rei da tropa selvagem um certo Herlechinus, que viria do Harilaking anglo-normando, rei da família Herlechini, que não é senão o Arlequim. Nosso Arlequim da commedia dell'arte foi, na origem, o sublime rei de um exército de fantasmas. Pode-se reconhecer esta forma primitiva do Arlequim em muitas personagens que existem no carnaval, graças à fantasia que usam. A partir de 1470 esta fantasia é descrita como despedaçada, cheia de rasgões, com pequenos pedaços de tecidos coloridos.
Um estudo semiológico das metamorfoses do personagem, sua passagem da horda primitiva para o palco da comédia, poderia ser feita mais detalhadamente. Não só a transformação da roupa esfarrapada em estilizados losangos coloridos, mas a conversão do porrete original em espada fálica. Igualmente, a figura original do Hallequim está sempre num cenário onde há cavalos e se inscreve no mito dos centauros. Esses cavalos, carroças, carruagens encaminham o tema do seqüestro, presente nas diversas peças e gravuras que tratam do Arlequim moderno. O que era grotesco atinge não apenas o cômico, mas até o sublime, através da estilização, em peças como "O triunfo de Arlequim", "Arlequim Imperador da Lua" e "Arlequim Cavaleiro do Sol" (séc. XVIII). O bárbaro e primitivo Hallequim surgia nas vilas e aldeias em meio a formidável charivari. Sobretudo no solstício de inverno (entre o Natal e a Epifania). Ele está registrado num texto do séc. XIV ("Roman de Fauvel") que, em forma de poesia, narra o casamento de um cavalo e uma mulher.
E por aí teríamos muito ainda a discorrer. A moderna teoria da carnavalização, que amplia o que em 1927 foi lançado por Mikhail Bakhtin, tem notável contribuição a dar não só na problematização e recuperação desse personagem, mostrando como o imaginário civiliza as imagens arcaicas. Um estudo moderno do Arlequim não pode desvinculá-lo da figura daquilo que em antropologia se chama de "trickster"- aquele mágico e malandro das tribos, que é tão bem encarnado no "Macunaíma" de Mário de Andrade.
E assim como a imagem do Arlequim se enriquece com a recuperação de seu metamorfoseado avesso histórico, também as figuras do Pierrô e da Colombina vão deixando de ser apenas fantasias episódicas e superficiais de uma festa carnavalesca, para serem estruturas simbólicas de nosso inconsciente e de nossos dramas sociais.
Tomemos um exemplo, entre tantos, na literatura brasileira: "Dona Flor e seus dois maridos", de Jorge Amado, é um romance que pode ser lido nessa clave. Vadinho é o Arlequim: dançarino, boêmio, brigão, don Juan, sedutor, jogador, vivendo aleatoriamente o prazer presente. Morre dançando no carnaval, fantasiado de mulher. Já Teodoro é o Pierrô: é o lugar da ordem, do prazer com horário certo, um burocrata no sexo e nos negócios. Porém, Dona Flor, envolvida por esses dois amores contraditórios, resolve imaginariamente o conflito que a Colombina tradicionalmente nunca pôde resolver. Ela fica com os dois. Trabalha pela inclusão imaginária, vivenciando uma verdade intemporal, pois as criaturas humanas são elas e suas contradições.
As máscaras nos falam das ambiguidades e a teoria da carnavalização ajuda a resgatar enigmas de ontem e a aclarar comportamentos individuais e sociais hoje.
[Jornal O Globo - 5 de Março de 2003]
APORTUGUESAMENTO DE ALGUMAS PALAVRAS DO FUTEBOL
Vejam, a seguir, trechos transcritos de alguns jornais da época em que o futebol chegou ao Brasil:
1. "Jamais, nesta capital, affluiu igual concurrência em jogos de foot-ball, nem mesmo durante os matches do Sul-Americano."
2. "A partida assumiu a proporção de um vultoso acontecimento que ultrapassou os limites do mundo sportivo..."
3. "...e tal resolução do digno delegado recebeu louvores de todos quantos se apinhavam no stadium."
4. "Venceu o valloroso eleven que, innegavelmente, melhor actuação produziu."
5. "O team do Flamengo mereceu sahir victorioso."
O futebol nasceu na Inglaterra. Veio para o Brasil carregadinho de termos ingleses. Com o tempo, foram traduzidos ou aportuguesados. "Foot-ball", "sport", "stadium" e "team" foram aportuguesados: futebol, esporte, estádio e time. "Match", "eleven", "off side" e "corner" foram traduzidos: jogo ou partida, onze, impedimento e escanteio.
Se isso aconteceu no futebol, por que não podemos fazer o mesmo em outras situações? O projeto do deputado Aldo Rebelo é bem-vindo. A Língua Portuguesa merece a nossa luta em sua defesa.
Prof. Sérgio Nogueira
ORIGEM DO TERMO "FORRÓ"
O forró, baile animado em que se dança ao som de ritmos nordestinos, é a redução do vocábulo "forrobodó", que Câmara Cascudo define no seu Dicionário do Folclore Brasileiro como uma festa popular, com música movimentada. O processo é o mesmo que produziu formas como "japa" (japonês), "refri" (refrigerante) ou "pornô" (pornográfico). Contudo, há uma versão popular de que o nome teria vindo da leitura estropiada da expressão inglesa " for all ", com que os engenheiros ferroviários ingleses da Great Western (ou os oficiais da base aérea americana de Natal, noutra versão) avisavam os operários de que a festa era aberta para todos. Lingüisticamente, a hipótese é tola; além disso, o forrobodó já existia no Brasil Colonial, muito antes da presença de ingleses ou americanos por aqui. (C.M.)
Cláudio Moreno
Uma leitora japonesa, casada com um brasileiro, escreve de Quioto para elogiar esta coluna. Como o casal pretende mudar-se para o Brasil, ela vem estudando regularmente o nosso idioma, mas tem encontrado algumas dúvidas que os livros de que dispõe não conseguem solucionar. "Não consigo entender, professor, por que parabéns não tem singular e por que real, a moeda brasileira, não tem plural". Como vou mostrar a seguir, minha cara leitora, não é bem isso o que acontece por aqui.
Em primeiro lugar, não podemos afirmar que parabéns não tem singular. É certo que existem, em nosso idioma, muitos vocábulos que praticamente só usamos no plural, conhecidos como pluralia tantum - expressão tradicional da gramática latina que significa "apenas plurais". E não são tão poucos assim; entre os mais conhecidos, lembro-te afazeres, anais, arredores, bodas, condolências, confins, esponsais, fezes, exéquias, núpcias, parabéns, pêsames, primícias, víveres. Como a marca do plural é sempre acrescentada a uma forma anterior, não-marcada, não há dúvida de que todos eles têm (ou tiveram) uma forma singular, que, por razões semânticas, simplesmente deixou de ser empregada. Em textos mais antigos, vais encontrar, aqui e ali, alguma ocorrência de pêsame, fez, boda, etc., prática logo abandonada. Nosso estimado Padre Vieira, em seus Sermões, escritos no século 17, usa parabém por toda parte, inclusive fazendo um jogo de palavras tão ao seu gosto: "Alcançaram o que pediram, aceitaram muito contentes o parabém do despacho, mas o despacho não era para bem". Certamente haveríamos de achar outros exemplos em escritores da mesma época, mas isso não deve obscurecer o fato, hoje incontestável, de que esses vocábulos devem ficar mesmo é no plural. Para fins práticos, devem ser considerados como aquelas cadeias de montanhas que também sugerem a existência de um singular perdido na noite dos tempos: os Alpes, os Andes e os Pirineus.
Quanto ao nosso real, admito que muita gente simplesmente não utiliza a forma do plural, sob a misteriosa justificativa de que é o nome próprio do nosso dinheiro (!); conseguem, sem enrubescer, dizer vinte real, assim como os camelôs cariocas falam de dez dólar. Estas pessoas devem ter memória curta, para esquecer que, em vernáculo, nossas moedas sempre tiveram singular e plural: sempre se falou e escreveu cruzeiros e cruzados; continuamos a nos endividar em dólares e em euros; as páginas da literatura estão repletas de tostões e vinténs, piastras e rupias, patacões e balastracas.
Quando a nossa atual moeda foi instituída, houve uma breve discussão sobre qual seria o seu plural; os mais afobadinhos encontraram "real - pl. réis" nos dicionários e vieram, triunfantes, corrigir os que começavam a dizer reais. Em pouco tempo, contudo, esclarecia-se o equívoco: réis era o plural de um real virtual ("moeda ideal", diz Morais), valor apenas de referência; o verdadeiro real, antiga e respeitável moeda portuguesa, fazia mesmo o plural reais (como, aliás, qualquer substantivo terminado em -AL). O velho dicionário de Morais (minha edição é de 1813) é bem rico em detalhes: explica-nos que havia os "reais brancos del-Rei D. Duarte; eram de cobre com estanho, 20 deles faziam uma libra e valiam 36 réis"; "os reais pretos, de cobre sem liga"; e "os reais de prata".
Portanto, prezada leitora, quem te disse que aqui não pluralizamos o nome da nossa moeda enganou-te direitinho, pois assim fazemos desde 1994. E já que vens morar no Brasil, brindo-te com uma útil observação: o antigo mil-réis hoje serve para designar, popularmente, qualquer unidade do inconstante dinheirinho brasileiro; eu já usei mil-réis (o nosso simpático merréis, avô da merreca) para falar do cruzeiro, do cruzado, do cruzado-novo, do cruzeiro-novo e agora do real. Se um dia - que os deuses não permitam! - surgir o real-novo, vou continuar a dizer "Custa dois mil-réis".
(Porto Alegre, 13 de novembro de 2004 - Jornal Zero Hora, Edição nº 14328)
[Prof Cláudio Moreno - E-Mail claudio.moreno@zerohora.com.br - www.sualingua.com.br ]
O VERDADEIRO SIGNIFICADO DA PALAVRA TREM
Interessante que o assunto mineirês veio a tona logo no dia que alguns transtornos foram causados pelo desconhecimento do mineirês por parte de alguns jornalistas que escreveram a seguinte manchete:
"Trens batem de frente em Minas".
Os mineiros obviamente não deram a devida importância, já que pra nós isto quer dizer apenas que duas coisas bateram. Poderiam ser dois carros, um carro e uma moto, uma carroça e um carro de boi; ou até mesmo um choque entre uma mala de viagem e a mesa de jantar...
Movido pela curiosidade, resolvi então consultar o Aurélio e vejam o que diz:
Trem: sm. 1. Objetos que formam a bagagem dum viajante. 2. Mobiliário duma casa. 3. Bras. Comboio ferroviário. 4. Bateria de cozinha. 5. Bras.Pop. Treco. 6. Diz de pessoa ou coisa ruim, imprestável.
(Bras. : é a abreviatura de Brasileirismo)
Vejam que o sentido de comboio ferroviário é apenas o 3º, e ainda é considerado um brasileirismo. Comentei o fato com um amigo especialista em etimologia que esclareceu a questão: o comboio ferroviário recebeu o nome de trem, justamente porque trazia, porque transportava, os trens das pessoas. Vale lembrar que nesta época o Brasil possuia uma malha ferroviária com relativa capilaridade e o transporte ferroviário era o mais importante, assim era natural que as pessoas fizessem esta associação.
Moral da estória: O mineiro é antes de tudo um erudito. Além de erudito,ainda é humilde e aceita que o pessoal dos outros estados tripudiem da forma como usa a palavra trem. Na verdade, acho que isto faz parte do espirito cristão do mineiro, ele escuta as gozações e pensa:
"Que trem, sô... mas que sejam perdoados, pois não sabem o que dizem".
[Quem conhecer o autor deste texto, avise-me por gentileza]
ORIGEM DA PALAVRA MANJEDOURA
Segundo o mestre Deonísio da Silva, manjedoura deve vir do italiano mangiatoia , cocho onde se põe comida para os animais. Pode ter derivado de manjar (comer), que tem formas semelhantes no francês manger e no italiano mangiare .
No latim, que deu origem ao português, ao francês e ao italiano, há o verbo manducare , que significa mastigar.
A manjedoura, por ter servido de berço ao Menino Jesus, tornou-se um símbolo cristão.
Manjedoura, portanto, é o lugar (douro) onde os animais comem (manjar).
É importante também observarmos o sufixo "-douro", que aparece em palavras como ancoradouro (lugar onde o navio ancora, põe a âncora para atracar), babadouro (tipo de protetor onde a criança baba) e bebedouro (onde se bebe água).
Com muita freqüência ouvimos "bebedor", em vez de bebedouro. Ora, bebedor é aquele que bebe, e não o lugar.
Por fim, é interessante lembrar que o sufixo "-douro" é variante de "-doiro". Isso significa que as formas ancoradoiro e bebedoiro também existem. E para o babadouro, o dicionário Aurélio também registra as formas babadoiro e babador. Existe ainda o sinônimo babeiro.
DE ONDE VEM O ARLEQUIM?
Affonso Romano de Sant'anna
Aí pelas ruas talvez exista ainda alguém fantasiado de Arlequim, como ocorria nos carnavais há algumas décadas. Mas é raro. Assim como o Pierrô e a Colombina, o Arlequim foi muito popular na virada do século. Aliás, não só esse trio, mas toda uma família de saltimbancos, que havia irrompido nos palcos do século XVI. Mas por uma série de fatores, a tematização desses tipos foi muito constante na virada do século XIX para o século XX.
Em 1892, Leon Cavallo cristalizou o conflito do triângulo amoroso em "Os palhaços". Em 1905, Picasso pinta "Família de saltimbancos" e outros quadros com esses personagens. Degas e Cézanne estão entre muitos que também pintaram seu "Arlequim". A própria literatura brasileira vem, em 1919, com "Carnaval", de Manuel Bandeira; em 1920, com "Máscaras", de Menotti del Picchia, e "Arlequinada", de Martins Fontes. Mário de Andrade, por sua vez, tematizou o carnaval sob várias formas e definia-se como uma criatura arlequinal.
Mas quem vê o Arlequim tão sestroso, folgazão e brejeiro (como se dizia), mal pode imaginar que num tempo remoto ele foi o avesso disto tudo. Exatamente. Originalmente, em vez de um sedutor, foi um violador. Em vez de amante, um estuprador. Em vez de um dançarino, um guerreiro bárbaro.
Por isto, o estudo de certas imagens e palavras mostra como o certo e o avesso vivem se intercambiando. Preocupado com essas ambivalências, Freud já havia anotado que a etimologia de "branco" e "preto" parecia ser a mesma, alertando para o fato de que o radical do francês "blanche" e do inglês "black" é o mesmo.
Arlequim, Hallequim. O nome é quase idêntico. Mas o significado diametralmente oposto.
Quem vê no palco ou no carnaval o saltitante e sedutor Arlequim nem percebe que ele é uma variante moderna de um tipo selvagem que comandava uma horda de homens-bestas. Hallequim é uma deformação onomástica de Harila-King - rei dos exércitos. Tinha na mão enorme maça ou tacape. Comandava um feralis-exércitus (exército de mortos). Pertencia à mesma estirpe de figuras primitivas, como o lendário rei Frotho, da mitologia dinamarquesa, que invadia aldeias, violentava mulheres e humilhava barbaramente os vencidos. Esses guerreiros exibiam a petulância (agressividade sexual), a lascívia (exigências sexuais) e se consideravam conubernales (companheiros da tenda do rei). Vestiam-se de peles selvagens, assemelhando-se aos ursos, e não cortavam os cabelos até que matassem alguém. Também não tinham propriedades pessoais e viviam se deslocando atrás de presas, como centauros seqüestradores de mulheres.
Mito? Realidade?
Esse exército não era só uma crença. Era muito bem representado por máscaras. Temos uma prova disto, uma descrição que data de 1100, vinda da Normandia, que cita como rei da tropa selvagem um certo Herlechinus, que viria do Harilaking anglo-normando, rei da família Herlechini, que não é senão o Arlequim. Nosso Arlequim da commedia dell'arte foi, na origem, o sublime rei de um exército de fantasmas. Pode-se reconhecer esta forma primitiva do Arlequim em muitas personagens que existem no carnaval, graças à fantasia que usam. A partir de 1470 esta fantasia é descrita como despedaçada, cheia de rasgões, com pequenos pedaços de tecidos coloridos.
Um estudo semiológico das metamorfoses do personagem, sua passagem da horda primitiva para o palco da comédia, poderia ser feita mais detalhadamente. Não só a transformação da roupa esfarrapada em estilizados losangos coloridos, mas a conversão do porrete original em espada fálica. Igualmente, a figura original do Hallequim está sempre num cenário onde há cavalos e se inscreve no mito dos centauros. Esses cavalos, carroças, carruagens encaminham o tema do seqüestro, presente nas diversas peças e gravuras que tratam do Arlequim moderno. O que era grotesco atinge não apenas o cômico, mas até o sublime, através da estilização, em peças como "O triunfo de Arlequim", "Arlequim Imperador da Lua" e "Arlequim Cavaleiro do Sol" (séc. XVIII). O bárbaro e primitivo Hallequim surgia nas vilas e aldeias em meio a formidável charivari. Sobretudo no solstício de inverno (entre o Natal e a Epifania). Ele está registrado num texto do séc. XIV ("Roman de Fauvel") que, em forma de poesia, narra o casamento de um cavalo e uma mulher.
E por aí teríamos muito ainda a discorrer. A moderna teoria da carnavalização, que amplia o que em 1927 foi lançado por Mikhail Bakhtin, tem notável contribuição a dar não só na problematização e recuperação desse personagem, mostrando como o imaginário civiliza as imagens arcaicas. Um estudo moderno do Arlequim não pode desvinculá-lo da figura daquilo que em antropologia se chama de "trickster"- aquele mágico e malandro das tribos, que é tão bem encarnado no "Macunaíma" de Mário de Andrade.
E assim como a imagem do Arlequim se enriquece com a recuperação de seu metamorfoseado avesso histórico, também as figuras do Pierrô e da Colombina vão deixando de ser apenas fantasias episódicas e superficiais de uma festa carnavalesca, para serem estruturas simbólicas de nosso inconsciente e de nossos dramas sociais.
Tomemos um exemplo, entre tantos, na literatura brasileira: "Dona Flor e seus dois maridos", de Jorge Amado, é um romance que pode ser lido nessa clave. Vadinho é o Arlequim: dançarino, boêmio, brigão, don Juan, sedutor, jogador, vivendo aleatoriamente o prazer presente. Morre dançando no carnaval, fantasiado de mulher. Já Teodoro é o Pierrô: é o lugar da ordem, do prazer com horário certo, um burocrata no sexo e nos negócios. Porém, Dona Flor, envolvida por esses dois amores contraditórios, resolve imaginariamente o conflito que a Colombina tradicionalmente nunca pôde resolver. Ela fica com os dois. Trabalha pela inclusão imaginária, vivenciando uma verdade intemporal, pois as criaturas humanas são elas e suas contradições.
As máscaras nos falam das ambiguidades e a teoria da carnavalização ajuda a resgatar enigmas de ontem e a aclarar comportamentos individuais e sociais hoje.
[Jornal O Globo - 5 de Março de 2003]
APORTUGUESAMENTO DE ALGUMAS PALAVRAS DO FUTEBOL
Vejam, a seguir, trechos transcritos de alguns jornais da época em que o futebol chegou ao Brasil:
1. "Jamais, nesta capital, affluiu igual concurrência em jogos de foot-ball, nem mesmo durante os matches do Sul-Americano."
2. "A partida assumiu a proporção de um vultoso acontecimento que ultrapassou os limites do mundo sportivo..."
3. "...e tal resolução do digno delegado recebeu louvores de todos quantos se apinhavam no stadium."
4. "Venceu o valloroso eleven que, innegavelmente, melhor actuação produziu."
5. "O team do Flamengo mereceu sahir victorioso."
O futebol nasceu na Inglaterra. Veio para o Brasil carregadinho de termos ingleses. Com o tempo, foram traduzidos ou aportuguesados. "Foot-ball", "sport", "stadium" e "team" foram aportuguesados: futebol, esporte, estádio e time. "Match", "eleven", "off side" e "corner" foram traduzidos: jogo ou partida, onze, impedimento e escanteio.
Se isso aconteceu no futebol, por que não podemos fazer o mesmo em outras situações? O projeto do deputado Aldo Rebelo é bem-vindo. A Língua Portuguesa merece a nossa luta em sua defesa.
Prof. Sérgio Nogueira
ORIGEM DO TERMO "FORRÓ"
O forró, baile animado em que se dança ao som de ritmos nordestinos, é a redução do vocábulo "forrobodó", que Câmara Cascudo define no seu Dicionário do Folclore Brasileiro como uma festa popular, com música movimentada. O processo é o mesmo que produziu formas como "japa" (japonês), "refri" (refrigerante) ou "pornô" (pornográfico). Contudo, há uma versão popular de que o nome teria vindo da leitura estropiada da expressão inglesa " for all ", com que os engenheiros ferroviários ingleses da Great Western (ou os oficiais da base aérea americana de Natal, noutra versão) avisavam os operários de que a festa era aberta para todos. Lingüisticamente, a hipótese é tola; além disso, o forrobodó já existia no Brasil Colonial, muito antes da presença de ingleses ou americanos por aqui. (C.M.)
RISCO DE MORTE / RISCO DE VIDA
Se o risco é sempre de coisa ruim ("risco de infecção", "risco de contaminação", "risco de não se classificar para a fase final do campeonato", "risco de ficar desempregado", "risco de adoecer" etc.), parece cabível que se dêem como legítimas as construções "risco de morte" e "risco de morrer" ("Fulano ainda corre risco de morte"; "Fulano corre risco de morrer").
No entanto, há pelo menos duas explicações para o emprego de "risco de vida" no lugar de "risco de morte". A primeira delas se baseia no inegável horror que a palavra "morte" causa, o que talvez nos faça fugir dela como o diabo foge da cruz. A segunda explicação (talvez mais plausível) se assenta na idéia do cruzamento de construções ("Sua vida corre risco" com "Ele corre risco de vida", por exemplo) ou ainda na pura e simples omissão ("Correr o risco de [perder a] vida"). O nome técnico dessa omissão (de termo que se subentende) é "elipse".
O fato é que, nesses casos, não parece sensato remar contra a maré. O uso mais do que difundido da expressão "risco de vida" é motivo mais do que suficiente para que a aceitemos pacificamente. É bom que se diga que não lhe faltam registros nos dicionários. O "Dicionário Houaiss" dá três exemplos do emprego de "risco" com o sentido de "probabilidade de perigo" ("risco de vida", "risco de infecção", "risco de contaminação"). Publicado em 2001, o "Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea", da Academia das Ciências de Lisboa, dá "risco de vida" e "perigo iminente de morte" como expressões equivalentes, exemplificadas com esta frase: "O doente encontra-se em risco de vida".
Se o risco é sempre de coisa ruim ("risco de infecção", "risco de contaminação", "risco de não se classificar para a fase final do campeonato", "risco de ficar desempregado", "risco de adoecer" etc.), parece cabível que se dêem como legítimas as construções "risco de morte" e "risco de morrer" ("Fulano ainda corre risco de morte"; "Fulano corre risco de morrer").
No entanto, há pelo menos duas explicações para o emprego de "risco de vida" no lugar de "risco de morte". A primeira delas se baseia no inegável horror que a palavra "morte" causa, o que talvez nos faça fugir dela como o diabo foge da cruz. A segunda explicação (talvez mais plausível) se assenta na idéia do cruzamento de construções ("Sua vida corre risco" com "Ele corre risco de vida", por exemplo) ou ainda na pura e simples omissão ("Correr o risco de [perder a] vida"). O nome técnico dessa omissão (de termo que se subentende) é "elipse".
O fato é que, nesses casos, não parece sensato remar contra a maré. O uso mais do que difundido da expressão "risco de vida" é motivo mais do que suficiente para que a aceitemos pacificamente. É bom que se diga que não lhe faltam registros nos dicionários. O "Dicionário Houaiss" dá três exemplos do emprego de "risco" com o sentido de "probabilidade de perigo" ("risco de vida", "risco de infecção", "risco de contaminação"). Publicado em 2001, o "Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea", da Academia das Ciências de Lisboa, dá "risco de vida" e "perigo iminente de morte" como expressões equivalentes, exemplificadas com esta frase: "O doente encontra-se em risco de vida".
A ESCATOLÓGICA ORIGEM DA PALAVRA "VAGA-LUME"
O lucente bichinho é um eufemismo vivo, porque "Lume" significa "fogo", "brilho", "luz"; e o "v" de "vaga-lume", na verdade, é um "c" que foi trocado por "v" para atenuar, para evitar o desconforto que a forma original causa ou causaria.
O Dicionário Aurélio, por exemplo, manda ver "pirilampo", cujos sinônimos não são nada simpáticos. O "Houaiss" é mais direto: dá logo a lista no próprio verbete "vaga-lume" (que, segundo a obra, também se pode grafar "vagalume", sem hífen, tese que não é confirmada no "Aurélio", nem no Dicionário da Academia de Lisboa).
O lucente bichinho é um eufemismo vivo, porque "Lume" significa "fogo", "brilho", "luz"; e o "v" de "vaga-lume", na verdade, é um "c" que foi trocado por "v" para atenuar, para evitar o desconforto que a forma original causa ou causaria.
O Dicionário Aurélio, por exemplo, manda ver "pirilampo", cujos sinônimos não são nada simpáticos. O "Houaiss" é mais direto: dá logo a lista no próprio verbete "vaga-lume" (que, segundo a obra, também se pode grafar "vagalume", sem hífen, tese que não é confirmada no "Aurélio", nem no Dicionário da Academia de Lisboa).
"AGORA EU ERA HERÓI"
É correto o emprego de "agora" em "Agora eu era herói", frase que inicia a linda música "João e Maria", composta por Sivuca, com letra de Chico Buarque?
"agora" pode equivaler a "neste momento", mas também pode equivaler a "nesse momento" ou "naquele momento", como atestam os dicionários. O de Antônio Houaiss dá este exemplo: "Esgotara suas energias, agora só queria descansar". O "Aurélio" dá este, de Machado de Assis: "Agora exercia a medicina como amador".
Sendo assim, a frase da memorável letra de Chico Buarque é perfeitamente vernácula.
É correto o emprego de "agora" em "Agora eu era herói", frase que inicia a linda música "João e Maria", composta por Sivuca, com letra de Chico Buarque?
"agora" pode equivaler a "neste momento", mas também pode equivaler a "nesse momento" ou "naquele momento", como atestam os dicionários. O de Antônio Houaiss dá este exemplo: "Esgotara suas energias, agora só queria descansar". O "Aurélio" dá este, de Machado de Assis: "Agora exercia a medicina como amador".
Sendo assim, a frase da memorável letra de Chico Buarque é perfeitamente vernácula.
GARÇOM/GARÇÃO/GARÇONETE/GARÇOA
A palavra "garçom" (que possui a variante "garção") vem do francês "garçon" ("jovem", "rapaz") e já foi usada em português com o sentido original, como se vê neste fragmento de Machado de Assis, citado no "Aurélio": "Era um lindo garção, lindo e audaz".
Na língua de hoje, predomina a forma "garçom", com o sentido de "empregado que serve em restaurantes". O "Vocabulário Ortográfico", da Academia, registra "garçoa". O único dicionário que registra "garçoa" é o de Caldas Aulete, que lhe dá o sentido de "moça", "rapariga". Os demais dão apenas "garçonete", e só como "empregada que serve em restaurantes".
A palavra "garçom" (que possui a variante "garção") vem do francês "garçon" ("jovem", "rapaz") e já foi usada em português com o sentido original, como se vê neste fragmento de Machado de Assis, citado no "Aurélio": "Era um lindo garção, lindo e audaz".
Na língua de hoje, predomina a forma "garçom", com o sentido de "empregado que serve em restaurantes". O "Vocabulário Ortográfico", da Academia, registra "garçoa". O único dicionário que registra "garçoa" é o de Caldas Aulete, que lhe dá o sentido de "moça", "rapariga". Os demais dão apenas "garçonete", e só como "empregada que serve em restaurantes".
UM DIA FORMIDÁVEL JÁ FOI UM DIA PAVOROSO
É interessante lembrar o caso da palavra "formidável". A sua raiz latina significa "medo, terror, pavor". Assim sendo, "um dia formidável" seria um dia "terrível, pavoroso". Hoje, sem dúvida, "um dia formidável" é um dia "maravilhoso". Temos aqui um exemplo de palavra que perdeu o seu sentido original e hoje apresenta um significado quase oposto.
É interessante lembrar o caso da palavra "formidável". A sua raiz latina significa "medo, terror, pavor". Assim sendo, "um dia formidável" seria um dia "terrível, pavoroso". Hoje, sem dúvida, "um dia formidável" é um dia "maravilhoso". Temos aqui um exemplo de palavra que perdeu o seu sentido original e hoje apresenta um significado quase oposto.
PESA-ME/PÊSAMES
A palavra "pêsames", plural de "pêsame", vem da forma verbal "pesa", associada ao pronome "me" ("pesa-me"). No caso, o verbo "pesar" tem o sentido de "causar desgosto": "Pesa-me muito vê-lo sofrer". De "pesa-me" surgiu "pêsame", hoje mais comum no plural ("pêsames").
A palavra "pêsames", plural de "pêsame", vem da forma verbal "pesa", associada ao pronome "me" ("pesa-me"). No caso, o verbo "pesar" tem o sentido de "causar desgosto": "Pesa-me muito vê-lo sofrer". De "pesa-me" surgiu "pêsame", hoje mais comum no plural ("pêsames").
CUIDADO COM A EPIDEMIA!
Não é correto dizer: "O gado da fazenda pegou a epidemia de aftosa", pois a palavra epidemia tem o radical grego demo, que significa povo.
Aftosa é doença própria de animais quadrúpedes, logo só podemos usar epidemia para doenças que dão em gente.
Não é correto dizer: "O gado da fazenda pegou a epidemia de aftosa", pois a palavra epidemia tem o radical grego demo, que significa povo.
Aftosa é doença própria de animais quadrúpedes, logo só podemos usar epidemia para doenças que dão em gente.
O "BOCA DO INFERNO"
Gregório de Matos foi o primeiro grande poeta brasileiro. Nasceu em 1633, em Salvador, na Bahia. Seus poemas denunciam a ganância e a busca do prazer pelos poderosos. Por isso, ganhou o apelido de "Boca do Inferno".
Gregório de Matos foi o primeiro grande poeta brasileiro. Nasceu em 1633, em Salvador, na Bahia. Seus poemas denunciam a ganância e a busca do prazer pelos poderosos. Por isso, ganhou o apelido de "Boca do Inferno".
URBANIDADE E HIPERURBANISMO
Estava escrito numa biblioteca pública: "É dever do funcionário público tratar com urbanidade o público e os colegas de serviço."
Dizer que "deve-se tratar alguém com urbanidade" estaria correto?
De fato, é de estranhar o emprego de "urbanidade" como equivalente a "gentileza, amabilidade", etc. Mas o problema é que a língua tem relação direta com a História, com os fatos que marcam a vida de uma comunidade ou do homem em si. A palavra "urbanidade" é da mesma família de "urbano, urbanismo, urbanizar, urbanização, urbe". Tudo isso parte de uma raiz latina ("urbe"), cujo sentido básico é "cidade".
Em seu dicionário, Caldas Aulete explica: Urbanidade - "Cortesia entre pessoas civilizadas; civilidade adquirida pelo trato no mundo." Aí está a chave para a compreensão do fato: é nas cidades que o homem encontra o homem; é nelas que se organiza a vida em sociedade, em grupo. É nelas que se estabelecem as regras de convívio, de respeito aos direitos alheios.
Não é à toa que se dá a todo o conjunto de direitos e deveres de um ser humano o nome de "cidadania". Qualquer semelhança com a palavra "cidade" não é mera coincidência.
Nos estudos lingüísticos, há um caso interessantíssimo: a "ultracorreção" ou "hiperurbanismo". O que é isso? Nada mais do que o excesso de preocupação com a correção lingüística, que - ironicamente - acaba resultando em erros. É o caso do cidadão que faz questão de acertar todas as concordâncias e acaba pondo no plural até o que não deve sair do singular, como em "Houveram vários problemas durante a festa". Não "houveram" problemas; "houve". Não se faz a flexão de plural do verbo haver nesses casos.
Tentando mostrar qualidades de ser "civilizado, culto", o cidadão erra por excesso. Isso se chama "hiperurbanismo" justamente porque a pessoa exagera nos dotes "urbanos" - cultura formal, no caso.
Estava escrito numa biblioteca pública: "É dever do funcionário público tratar com urbanidade o público e os colegas de serviço."
Dizer que "deve-se tratar alguém com urbanidade" estaria correto?
De fato, é de estranhar o emprego de "urbanidade" como equivalente a "gentileza, amabilidade", etc. Mas o problema é que a língua tem relação direta com a História, com os fatos que marcam a vida de uma comunidade ou do homem em si. A palavra "urbanidade" é da mesma família de "urbano, urbanismo, urbanizar, urbanização, urbe". Tudo isso parte de uma raiz latina ("urbe"), cujo sentido básico é "cidade".
Em seu dicionário, Caldas Aulete explica: Urbanidade - "Cortesia entre pessoas civilizadas; civilidade adquirida pelo trato no mundo." Aí está a chave para a compreensão do fato: é nas cidades que o homem encontra o homem; é nelas que se organiza a vida em sociedade, em grupo. É nelas que se estabelecem as regras de convívio, de respeito aos direitos alheios.
Não é à toa que se dá a todo o conjunto de direitos e deveres de um ser humano o nome de "cidadania". Qualquer semelhança com a palavra "cidade" não é mera coincidência.
Nos estudos lingüísticos, há um caso interessantíssimo: a "ultracorreção" ou "hiperurbanismo". O que é isso? Nada mais do que o excesso de preocupação com a correção lingüística, que - ironicamente - acaba resultando em erros. É o caso do cidadão que faz questão de acertar todas as concordâncias e acaba pondo no plural até o que não deve sair do singular, como em "Houveram vários problemas durante a festa". Não "houveram" problemas; "houve". Não se faz a flexão de plural do verbo haver nesses casos.
Tentando mostrar qualidades de ser "civilizado, culto", o cidadão erra por excesso. Isso se chama "hiperurbanismo" justamente porque a pessoa exagera nos dotes "urbanos" - cultura formal, no caso.
DESTRO/DESTREZA/ESQUERDO/SINISTRO
O que é ter destreza, mostrar destreza? É ter habilidade, agilidade, aptidão. Mas o primeiro sentido que aparece nos dicionários para "destreza" é "qualidade de destro". E o que é "destro" (que se lê "dêstro", com o "e" fechado, segundo os dicionários)? É "direito", ou "que fica do lado direito".
Como a maioria das pessoas tem mais agilidade com a mão direita (destra) do que com a esquerda, a habilidade acabou sendo chamada de "destreza".
E quem tem habilidade com as duas mãos é "ambidestro"; quem não tem com nenhuma é "ambiesquerdo".
Voltando aos destros, veja agora um dos tantos caprichos da língua portuguesa: "destro" se escreve com "s", mas em muitas palavras compostas em que entra esse elemento aparece o "x" da raiz latina ("dextru, dexter"): dextrocardia, dextrocerebral, dextrofobia, dextropedal, etc.
Ainda com relação ao sentido que as palavras adquirem, é interessante notar o que ocorre com "esquerdo". A palavra vem do vasconço, ou seja, da língua do País Basco. Em latim, "esquerdo" é "sinistru, sinister". E o que é "sinistro", em português? Além de "esquerdo" ("Mal podia a mão sinistra vibrar a sangrenta espada", escreveu Gonçalves Dias), "sinistro" tem vários sentidos ligados à idéia de temor, ameaça, mau agouro, maldade etc. Em linguagem securitária (do ramo de seguros), o sinistro nada mais é do que o próprio acidente. Tudo porque o "bom", o "normal" é o destro; o esquerdo (o sinistro) é "anormal".
O que é ter destreza, mostrar destreza? É ter habilidade, agilidade, aptidão. Mas o primeiro sentido que aparece nos dicionários para "destreza" é "qualidade de destro". E o que é "destro" (que se lê "dêstro", com o "e" fechado, segundo os dicionários)? É "direito", ou "que fica do lado direito".
Como a maioria das pessoas tem mais agilidade com a mão direita (destra) do que com a esquerda, a habilidade acabou sendo chamada de "destreza".
E quem tem habilidade com as duas mãos é "ambidestro"; quem não tem com nenhuma é "ambiesquerdo".
Voltando aos destros, veja agora um dos tantos caprichos da língua portuguesa: "destro" se escreve com "s", mas em muitas palavras compostas em que entra esse elemento aparece o "x" da raiz latina ("dextru, dexter"): dextrocardia, dextrocerebral, dextrofobia, dextropedal, etc.
Ainda com relação ao sentido que as palavras adquirem, é interessante notar o que ocorre com "esquerdo". A palavra vem do vasconço, ou seja, da língua do País Basco. Em latim, "esquerdo" é "sinistru, sinister". E o que é "sinistro", em português? Além de "esquerdo" ("Mal podia a mão sinistra vibrar a sangrenta espada", escreveu Gonçalves Dias), "sinistro" tem vários sentidos ligados à idéia de temor, ameaça, mau agouro, maldade etc. Em linguagem securitária (do ramo de seguros), o sinistro nada mais é do que o próprio acidente. Tudo porque o "bom", o "normal" é o destro; o esquerdo (o sinistro) é "anormal".
CURIOSIDADES ORIENTAIS EM NOSSO IDIOMA
-Decassegui: é o nome dado aos brasileiros que vão trabalhar no Japão.
-Issei: japonês que emigra para a América.
-Nissei: Filho de pais japoneses, nascido na América.
-Sansei: Filho de nissei, nascido e criado na América.
-Bonsai é planta em bandeja. Árvores e arbustos plantados em pequenas bandejas que os mantêm, com podas constantes, num tamanho mínimo. Uma prática milenar na China e no Japão, sendo que neste país há o bonsai mais antigo do mundo, com cerca de 1500 anos. A curiosidade maior é que os frutos dessas árvores minúsculas são de tamanho normal.
Essas palavras já constam dos principais dicionários e do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da ABL.
-Decassegui: é o nome dado aos brasileiros que vão trabalhar no Japão.
-Issei: japonês que emigra para a América.
-Nissei: Filho de pais japoneses, nascido na América.
-Sansei: Filho de nissei, nascido e criado na América.
-Bonsai é planta em bandeja. Árvores e arbustos plantados em pequenas bandejas que os mantêm, com podas constantes, num tamanho mínimo. Uma prática milenar na China e no Japão, sendo que neste país há o bonsai mais antigo do mundo, com cerca de 1500 anos. A curiosidade maior é que os frutos dessas árvores minúsculas são de tamanho normal.
Essas palavras já constam dos principais dicionários e do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da ABL.
ALGUMAS FRASES INCORRETAS DO NOSSO DIA-A-DIA
Segundo a lei, "estupro" é só de mulheres. Algo parecido ocorre com a palavra "rapto". Com alguma freqüência, temos o desprazer de ler em nossos jornais que "uma criança foi raptada". Novamente, encontramos o mau uso de uma palavra: um menino não pode ser raptado, pois rapto é sempre de mulheres e com fins libidinosos. Na verdade, as crianças são seqüestradas. Como não há pedido de resgate, preferem dizer que elas foram "raptadas". Há quem pense que, se não houver pedido de resgate, não há seqüestro. Outro engano. Quando o seqüestrador entra em contato com a família e exige alguma coisa em troca para libertar o seqüestrado, temos um outro crime: a extorsão. Assim sendo, o que os jornais chamam de "seqüestro" na maioria das vezes trata-se de um seqüestro seguido de extorsão ou extorsão mediante seqüestro. Seqüestrar é "tirar a liberdade de alguém ou alguma coisa". É por isso que um bem pode ser seqüestrado, ou seja, torna-se indisponível (seu dono não pode vendê-lo, por exemplo).
É interessante lembrar o velho caso do "roubo" e do "furto". Só há roubo se houver algum tipo de "violência". É comum as pessoas definirem os cleptomaníacos como "aqueles que têm a mania de roubar". Está errado. O cleptomaníaco tem a mania de furtar. Em geral, ele não agride ninguém. O seu prazer é "pegar escondido".
É também comum lermos ou ouvirmos no meio jornalístico: "Fulano entrou com uma liminar." Ora, ninguém entra com liminar. Liminar é algo que se pede, e o juiz concede ou não. É a mesma história do "entrar com efeito suspensivo". Isso é muito comum no meio esportivo. "Efeito" é conseqüência. Ninguém "entra" com efeito suspensivo. Mais uma vez é algo que se pede. O certo, portanto, é dizer que "se pediu efeito suspensivo". Agora, se você quer ver um juiz ficar "louco da vida", é só dizer que ele "deu um parecer". Quem dá parecer é consultor, perito, advogado... Juiz decide.
E em relação ao termo "denúncia", para quem não sabe, a verdadeira denúncia só pode ser feita pelo Ministério Público. Apenas o promotor pode apresentar uma denúncia. Rigorosamente, você não pode denunciar o seu vizinho porque ele bate na mulher. O cidadão comum acusa. Na verdade, nós estamos falando de uma denúncia formal, pois na linguagem popular o uso do verbo denunciar já está consagrado. Depois do "disque-denúncia", então, não tem mais jeito.
É interessante lembrar o velho caso do "roubo" e do "furto". Só há roubo se houver algum tipo de "violência". É comum as pessoas definirem os cleptomaníacos como "aqueles que têm a mania de roubar". Está errado. O cleptomaníaco tem a mania de furtar. Em geral, ele não agride ninguém. O seu prazer é "pegar escondido".
É também comum lermos ou ouvirmos no meio jornalístico: "Fulano entrou com uma liminar." Ora, ninguém entra com liminar. Liminar é algo que se pede, e o juiz concede ou não. É a mesma história do "entrar com efeito suspensivo". Isso é muito comum no meio esportivo. "Efeito" é conseqüência. Ninguém "entra" com efeito suspensivo. Mais uma vez é algo que se pede. O certo, portanto, é dizer que "se pediu efeito suspensivo". Agora, se você quer ver um juiz ficar "louco da vida", é só dizer que ele "deu um parecer". Quem dá parecer é consultor, perito, advogado... Juiz decide.
E em relação ao termo "denúncia", para quem não sabe, a verdadeira denúncia só pode ser feita pelo Ministério Público. Apenas o promotor pode apresentar uma denúncia. Rigorosamente, você não pode denunciar o seu vizinho porque ele bate na mulher. O cidadão comum acusa. Na verdade, nós estamos falando de uma denúncia formal, pois na linguagem popular o uso do verbo denunciar já está consagrado. Depois do "disque-denúncia", então, não tem mais jeito.
A ARTE DE ADVINHAR O PASSADO: À LUZ DA ETIMOLOGIA - I
Gabriel Perissé
Gabriel Perissé
O passado é aquilo que não passa. É aquilo que permanece registrado pelas palavras e, sobretudo, no corpo das palavras.
A etimologia, ciência auxiliar da filosofia e da reflexão literária, mostra-nos a consistência de cada palavra e nos ajuda, como diria Clarice Lispector, a espanar a poeira que se acumula sobre a linguagem, e a desvirtua.
O uso banalizador da linguagem torna-a opaca, anêmica, vazia, insossa, inútil convenção a que obedecemos sem refletir. Mas quando a estudamos etimologicamente, vislumbramos coincidências e explicações. As palavras se rejuvenescem e brilham diante de nós.
Lendo a sua história, descobrimos se o que as palavras dizem é de fato o que desejamos dizer, e aprendemos como é necessário limpar nossos olhos para vê-las de novo, percorrer o caminho que nos leva às suas origens, adivinhar (adivinhar é dom divino...) como tudo começou.
Muitas das nossas desorientações se devem ao fato de não procurarmos o oriente, lugar onde nasce o sol da verdade, o étimo da palavra. Seríamos mais originais se nos guiássemos pelo sentido primeiro das expressões cotidianas. Lemos o jornal, ouvimos notícias, mas as palavras lidas e ouvidas permanecem neutralizadas pela rotina ou por nossa cegueira. Daí a importância do colírio etimológico!
A etimologia revê a palavra em sua radicalidade, denunciando falsas interpretações, desempoeirando séculos de mal-entendidos.
"Candidato", por exemplo, é uma palavra que, desgastada pelo uso, traz em si uma verdade que vale a pena recuperar. Vem do latim candidatus, isto é, vestido de branco (candidus). Na antigüidade, aquele que disputava um cargo público e precisava angariar votos vestia-se de branco para simbolizar sua pureza. É lógico, portanto, que exijamos de um candidato ou candidata que a sua vida, e não apenas as suas roupas, estejam limpas!
Outra palavra do âmbito político: demagogo. Dêmós, em grego, é povo. Demografia é o estudo estatístico das populações. Já a partícula agogós significa "aquele que conduz". A função do pedagogo, por exemplo, era levar o aluno à escola. Chamava-se demagogo, portanto, quem conduzia o povo. Demagogo era o líder popular em quem se depositavam as esperanças de uma nação. Com o tempo (e com os abusos), a palavra adquiriu conotação negativa, mas o certo mesmo seria votarmos em nossos mais competentes demagogos!
A etimologia é luz no túnel do tempo.
[Gabriel Perissé é autor dos livros "Ler, pensar e escrever" (Ed. Arte e Ciência), "O leitor criativo" (Omega Editora) e do recém-lançado "Palavra e origens" (Editora Mandruvá).]
Publicado no jornal Correio da Cidadania.
A etimologia, ciência auxiliar da filosofia e da reflexão literária, mostra-nos a consistência de cada palavra e nos ajuda, como diria Clarice Lispector, a espanar a poeira que se acumula sobre a linguagem, e a desvirtua.
O uso banalizador da linguagem torna-a opaca, anêmica, vazia, insossa, inútil convenção a que obedecemos sem refletir. Mas quando a estudamos etimologicamente, vislumbramos coincidências e explicações. As palavras se rejuvenescem e brilham diante de nós.
Lendo a sua história, descobrimos se o que as palavras dizem é de fato o que desejamos dizer, e aprendemos como é necessário limpar nossos olhos para vê-las de novo, percorrer o caminho que nos leva às suas origens, adivinhar (adivinhar é dom divino...) como tudo começou.
Muitas das nossas desorientações se devem ao fato de não procurarmos o oriente, lugar onde nasce o sol da verdade, o étimo da palavra. Seríamos mais originais se nos guiássemos pelo sentido primeiro das expressões cotidianas. Lemos o jornal, ouvimos notícias, mas as palavras lidas e ouvidas permanecem neutralizadas pela rotina ou por nossa cegueira. Daí a importância do colírio etimológico!
A etimologia revê a palavra em sua radicalidade, denunciando falsas interpretações, desempoeirando séculos de mal-entendidos.
"Candidato", por exemplo, é uma palavra que, desgastada pelo uso, traz em si uma verdade que vale a pena recuperar. Vem do latim candidatus, isto é, vestido de branco (candidus). Na antigüidade, aquele que disputava um cargo público e precisava angariar votos vestia-se de branco para simbolizar sua pureza. É lógico, portanto, que exijamos de um candidato ou candidata que a sua vida, e não apenas as suas roupas, estejam limpas!
Outra palavra do âmbito político: demagogo. Dêmós, em grego, é povo. Demografia é o estudo estatístico das populações. Já a partícula agogós significa "aquele que conduz". A função do pedagogo, por exemplo, era levar o aluno à escola. Chamava-se demagogo, portanto, quem conduzia o povo. Demagogo era o líder popular em quem se depositavam as esperanças de uma nação. Com o tempo (e com os abusos), a palavra adquiriu conotação negativa, mas o certo mesmo seria votarmos em nossos mais competentes demagogos!
A etimologia é luz no túnel do tempo.
[Gabriel Perissé é autor dos livros "Ler, pensar e escrever" (Ed. Arte e Ciência), "O leitor criativo" (Omega Editora) e do recém-lançado "Palavra e origens" (Editora Mandruvá).]
Publicado no jornal Correio da Cidadania.
PALAVRA PUXA PALAVRA: À LUZ DA ETIMOLOGIA - II
Gabriel Perissé
Gabriel Perissé
"Toda língua são rastros de velho mistério", disse Guimarães Rosa.
A etimologia não chega a ser uma ciência, pelo menos no sentido rigorista do termo. Constitui uma disciplina, um método com o qual recuperamos o vigor de palavras que pronunciamos diariamente.
Perseguir as pistas que o passado deixou nas palavras é uma das melhores formas de reencontrar nossas heranças e fazer um exercício de reflexão sobre quem somos, homo sapiens e homo loquens , seres que concretizam na linguagem o seu saber.
Saber lembra sabor, dois conceitos etimologicamente vinculados. O ser humano que saboreia a realidade é mais sábio, é mais humano.
E ser humano é ser aquele que sabe ter nascido do húmus, da terra (a propósito, em sua tradução do Gênesis Terroso , um neologismo perfeito para a noção que reside na palavra hebraica).
Nesse palavra-puxa-palavra, o ser humano descobre que é mais humano quando pratica a humildade, virtude que nada tem de rebaixamento, mas é a qualidade de quem emerge do húmus, do barro, e mantém os pés no chão.
Sem dúvida, a etimologia pode dar pé a explicações absurdas, a "chutes" (para fora) do ponto de vista filológico.
Como no caso da palavra cadáver , que seria composta, na imaginação dos etimologistas medievais, pela primeira sílaba de cada uma das três palavras da frase latina carnem data vermibus (carne entregue aos vermes).
A etimologia pode dar margem também a especulações jocosas, como a que Tim Maia fez sobre a palavra robótica , associando-a ao verbo "robar" - eu robo, tu robas, todos robam... ou a constatações que só se tornam incontestáveis depois de apontadas, como a de Carlos Drummond de Andrade: "o imposto se chama imposto porque é imposto."
As palavras ganham novos coloridos com o tempo e pela etimologia podemos aquilatar as "camadas de tinta" que estão por baixo.
Um curioso exemplo é o da palavra museu . O museu remete às musas, entidades encarregadas de preservar as artes e de lembrar aos seres humanos que podem subir ao Olimpo, aos céus, e partilhar com os deuses a beleza e a imortalidade.
Entre as musas estão a poesia, a história, e, sobretudo, está a música (óbvio, não?), que Gilberto Gil cantou: "Minha música, musa única...".
A etimologia faz-nos ouvir a música que adormeceu nas palavras.
[Gabriel Perissé é autor dos livros "Ler, pensar e escrever" (Ed. Arte e Ciência), "O leitor criativo" (Omega Editora) e do recém-lançado "Palavra e origens" (Editora Mandruvá).]
Publicado no jornal Correio da Cidadania.
A etimologia não chega a ser uma ciência, pelo menos no sentido rigorista do termo. Constitui uma disciplina, um método com o qual recuperamos o vigor de palavras que pronunciamos diariamente.
Perseguir as pistas que o passado deixou nas palavras é uma das melhores formas de reencontrar nossas heranças e fazer um exercício de reflexão sobre quem somos, homo sapiens e homo loquens , seres que concretizam na linguagem o seu saber.
Saber lembra sabor, dois conceitos etimologicamente vinculados. O ser humano que saboreia a realidade é mais sábio, é mais humano.
E ser humano é ser aquele que sabe ter nascido do húmus, da terra (a propósito, em sua tradução do Gênesis Terroso , um neologismo perfeito para a noção que reside na palavra hebraica).
Nesse palavra-puxa-palavra, o ser humano descobre que é mais humano quando pratica a humildade, virtude que nada tem de rebaixamento, mas é a qualidade de quem emerge do húmus, do barro, e mantém os pés no chão.
Sem dúvida, a etimologia pode dar pé a explicações absurdas, a "chutes" (para fora) do ponto de vista filológico.
Como no caso da palavra cadáver , que seria composta, na imaginação dos etimologistas medievais, pela primeira sílaba de cada uma das três palavras da frase latina carnem data vermibus (carne entregue aos vermes).
A etimologia pode dar margem também a especulações jocosas, como a que Tim Maia fez sobre a palavra robótica , associando-a ao verbo "robar" - eu robo, tu robas, todos robam... ou a constatações que só se tornam incontestáveis depois de apontadas, como a de Carlos Drummond de Andrade: "o imposto se chama imposto porque é imposto."
As palavras ganham novos coloridos com o tempo e pela etimologia podemos aquilatar as "camadas de tinta" que estão por baixo.
Um curioso exemplo é o da palavra museu . O museu remete às musas, entidades encarregadas de preservar as artes e de lembrar aos seres humanos que podem subir ao Olimpo, aos céus, e partilhar com os deuses a beleza e a imortalidade.
Entre as musas estão a poesia, a história, e, sobretudo, está a música (óbvio, não?), que Gilberto Gil cantou: "Minha música, musa única...".
A etimologia faz-nos ouvir a música que adormeceu nas palavras.
[Gabriel Perissé é autor dos livros "Ler, pensar e escrever" (Ed. Arte e Ciência), "O leitor criativo" (Omega Editora) e do recém-lançado "Palavra e origens" (Editora Mandruvá).]
Publicado no jornal Correio da Cidadania.
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